Recentemente (dezembro/2014) participei de uma mesa redonda que avaliava a hipotética “alternativa ao uso de antibióticos na produção animal”. O objetivo da sabatina de abrangência cosmopolita era conhecer o ponto de vista de um grupo de interlocutores escolhido pela agência de notícias europeia Feedinfo News Service.
O grupo foi composto por Peter Borriello (CEO, Veterinary Medicine Directorate, United Kingdon), representando a União Europeia, Cyril Gay (National Program Leader for Animal Health and Safety, USDA/ARS) representando a América do Norte, Delia Grace (Program Leader Food Safety and Zoonoses), International Livestock Research Institute, Kenya) representando o continente Africano, Kyung-Woo Lee (Assistant Professor, Department of Animal Science and Technology KonKuk University, South Korea) que representou o continente Asiático, e eu mesmo que representei a América do Sul.
A “banca de examinadores” iniciou a sessão comentando que, de acordo, com a Dra. Margaret Chan, Diretora-Geral da Organização Mundial da Saúde, o mundo caminha para uma “era pós-antibióticos”, e limitar o uso deles na produção animal passa a ser mandatório, já que estão cada vez mais sob holofotes da mídia, sobretudo em países emergentes.
Perguntaram minha opinião e então respondi: “É importante ressaltar que a resistência aos antibióticos trata-se de um fenômeno natural, uma vez que bactérias resistentes já foram encontradas em fazendas de produção orgânica de brotos de feijão, água coletada em rios, oceanos e vias subterrâneas, focas habitantes do Ártico, porcos selvagens e babuínos alimentados exclusivamente da natureza, e até mesmo em amostras do permafrost (fina camada congelada sob a superfície do solo) com mais de 30.000 anos, nas quais os testes isotópicos revelaram nenhum vestígio de contato animal e/ou humano. A hipótese de uma relação causal entre o uso de um antibiótico melhorador de desempenho na alimentação dos animais e o aumento da incidência de bactérias resistentes em seres humanos ainda não foi comprovada cientificamente, apesar de grande número de estudos epidemiológicos realizados. Como exemplo, cito aquele episódio em que autoridades europeias proibiram o uso da avoparcina nos animais, associando-a hipoteticamente às bactérias resistentes à vancomicina em seres humanos. A causalidade nunca foi comprovada e onde a a avoparcina foi mantida nunca se registrou resistência à vancomicina. Outrossim, a resistência à vancomicina persistiu em outras regiões, mesmo depois de uma década da proibição de avoparcina, circunstância que sustenta a suspeita do uso não racional na prática clínica humana. Este fenômeno explica o porquê do acesso à determinadas informações não ser suficiente, mesmo absolutamente baseados em evidências empíricas. Ou seja, o ser humano precisa estar predisposto à um determinado tipo de pensamento para aceitar o argumento científico. Simultaneamente, o princípio da precaução segue ecoando, já que a percepção de sanidade cresce gradualmente entre os consumidores, embora de maneira equivocada, inclusive nos mercados emergentes, onde cidadãos tem se atentado para as modernas técnicas de criação animal. A produção de proteína animal mudou significativamente nos últimos 30 anos, devido à redução do número de agricultores, à limitação de terra disponível, à nova dinâmica econômica e à mobilização de mais tecnologia de ponta. Esse ambiente concorrencial contemporâneo afeta todos os empreendedores e acaba motivando os líderes vanguardistas, ao mesmo tempo provocando ansiedade naqueles conservadores.”
Em seguida, afirmaram que em alguns mercados, há uma falta óbvia de rigorosos padrões de regulamentação (por exemplo, as especificações indianas para alimentação de aves, que apenas recomendam evitar o uso de antibióticos melhoradores do desempenho). Então me perguntaram: Por que muitas autoridades deixam de proibir o uso dos melhoradores de desempenho?
Respondi: “Talvez tais autoridades não tenham registado oficialmente a proibição porque baseiam suas decisões em indicadores científicos, resultantes da análise do risco quantitativo, cujos resultados orientam se devem proibir ou manter essa ou aquela molécula. Certamente essas mesmas autoridades dirigiram a seguinte sequência de perguntas a si: Existe um problema de infecções por bactérias resistentes à antibióticos em seres humanos por aqui? Quais são as infecções mais comuns com bactérias resistentes aos antibióticos por aqui? Quais são as principais fontes de infecção por bactérias resistentes a antibióticos em seres humanos por aqui? No caso do Brasil, por exemplo, a legislação oficial proibiu o uso dos antimicrobianos de importância crítica (cefalosporinas de terceira e quarta gerações, macrolídeos, quinolonas e fluoroquinolonas), utilizados para melhorar o desempenho zootécnico, segundo determinação científica sustentada pelo Codex Alimentarius.”
Logo depois, sustentaram que a maioria das autoridades públicas publicam poucos dados sobre a utilização dos antibióticos em animais e que o sistema dinamarquês VETSTAT é considerado exceção. Perguntaram como eu explicaria essa falta de informação? O processo utilizado (coleta, armazenamento e disponibilização dos dados) deveria ser modificado? Circunstancialmente, como os pesquisadores/consumidores podem acompanhar as potenciais reduções ou alterações no uso dos antibióticos?
Respondi assim: “Uma vez que a solução de um problema hipotético depende da sua existência, considero lógico inicialmente medir a incidência de resistência cruzada bacteriana, e em seguida, atuar sobre sua causa respectiva. A fim de assegurar que a causa determinada gera algum risco, necessário se faz estabelecer uma avaliação quantitativa desse risco, conforme definição do Codex Alimentarius, ou seja, na ausência de causalidade não há nenhum risco. Ou seja, o conjunto de ações a ser implementado deverá seguir modelagem determinada pelo estudo da correlação entre a ocorrência de infecções animais e quanto da carne/produtos contaminados por micro-organismos (fator causal) consumidos pelos seres humanos pode desencadear uma hipotética resistência bacteriana (perigo). É importante ressaltar que até agora os estudos os epidemiológicos executados não encontraram provas científicas conclusivas que justifiquem qualquer alteração no modelo de inventário, atualmente praticado ou dos dados de prescrição e uso relatados pelos profissionais habilitados e usuários. No Brasil, por exemplo, os veterinários armazenam dados sobre a quantidade e o tipo de medicamentos que prescrevem, demonstrando a quantidade exata de antibióticos misturados à alimentação animal e usados no combate às diferentes desordens que acometem diferentes espécies. Todos os criadores recebem uma prescrição do médico veterinário responsável, documento que permanece na propriedade rural para verificação do órgão regulador oficial. Importante salientar que a hipotética proibição do uso dos melhoradores de desempenho automaticamente estabelece a necessidade de implementação de um sistema de controle de utilização de antibióticos na produção animal, incluindo não apenas os misturados aos alimentos, mas também aqueles de ação preventiva ou terapêutica. Tal sistema de monitoramento requer o controle de toda atividade veterinária, com especial atenção aos medicamentos prescritos. Além disso, torna-se necessário também monitorar e controlar o acesso aos medicamentos antimicrobianos, que só poderão ser vendidos sob o controle de um sistema de monitoramento legal. Quero dizer, qualquer acesso ao antibiótico deverá ser severamente limitado e dependente da receita veterinária, por sua vez submetida a um sistema de monitoramento e controle. Essas implicações vêm sendo sido discutidas intensamente, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos e no Brasil. Na União Europeia, por sua vez, muitos países já testam diferentes sistemas para monitoramento e controle do uso dos antibióticos. No Brasil, as autoridades públicas e o setor privado têm se aproximado com objetivo de discutir qual a maneira mais adequada de estabelecimento desse complexo sistema que exige a criação de uma agência especializada para sua execução, bem como, a disponibilização de protocolos altamente eficientes para armazenamento e confiabilidade dos dados manejados.”
Mais uma pergunta: Como a América do Sul pode avançar no uso responsável de antibióticos? Existe uma diferença significativa entre a política e a prática empregada?
Então respondi: “O órgão regulador brasileiro cumpre com as recomendações da OIE, OMS e as normas do Codex Alimentarius relacionadas ao uso responsável dos antibióticos, seja no melhoramento do desempenho, ou na prevenção ou tratamento de doenças. A linha de raciocínio se fundamenta nos resultados científicos de eficiência zootécnica e resistência bacteriana, alinhados à garantia de abastecimento dos consumidores (segurança alimentar/food security) com produtos confiáveis (segurança dos alimentos/food safety. Simultaneamente, o setor privado faz uso de boas práticas de fabricação, as quais estabelecem condições sanitárias para as instalações e equipamentos, pessoal de trabalho e de produção/linha de montagem, qualificação dos fornecedores e controle dos insumos, prevenção da contaminação cruzada, e programas de rastreabilidade e recolhimento de mercadorias avariadas. Finalmente, os veterinários e criadores utilizam somente antibióticos aprovados, mantém vigilância ininterrupta e continuam implementando melhorias cada vez mais avançadas. No caso do uso dos antibióticos misturados à alimentação animal, esses permanecem segregados em locais exclusivos para armazenamento e pesagem, sob rigoroso controle de mistura de sequência e homogeneidade, sob validação dos procedimentos de limpeza e procedimentos para a adição seguinte, e de acordo com a prescrição original do médico veterinário, profissional absolutamente comprometidos com a utilização prudente dos antibióticos e responsável pelas instruções de dosagem e retirada. Em síntese, não há qualquer incompatibilidade entre o arcabouço regulatório e a prática industrial, já que as interfaces envolvidas na cadeia produtiva partilham do mesmo objetivo que é superar os desafios da humanidade, combater a fome global e fornecer alimentos seguros.”
Os organizadores da mesa redonda então indagaram se mirando o futuro, eu esperaria mais restrições regulatórias das autoridades públicas ao redor do mundo? E como as empresas deveriam reagir a essas restrições?
Resumidamente argumentei: “Levando em conta a importância dos antibióticos na prática veterinária, considero que a imposição de restrições regulamentares sem base científica vai estimular ainda mais a rejeição à influência benéfica das ciências naturais, bem como, incrementar o desdém acerca dos perigos reais (baixa renda, fome, epidemias, etc.) que afligem os cidadãos e consumidores globais menos afortunados. Outrossim, é mandatório esforçar-se na utilização do melhorador de desempenho “ideal” (idealizado pela Organização Mundial da Saúde/OMS), aquele sem efeito cancerígeno ou mutagênico e que atua favorecendo a microbiota comensal normal e influencia somente as bactérias Gram-positivas, eficaz em pequenas doses, com baixa absorção oral (nenhuma ação sistêmica), de baixa capacidade residual, não-tóxico para os animais nas doses recomendadas, sem possibilidade de geração de resistência cruzada com outros antimicrobianos, e finalmente não considerado criticamente importante na terapêutica da medicina humana ou veterinária e incapaz de produzir efeitos deletérios ao meio ambiente.”
Então complementaram perguntando se o Poder Público (Governo) deve encabeçar as inciativas de mudanças nas práticas agrícolas correntes?
Eu respondi: “O desenvolvimento sustentável do agronegócio contemporâneo depende da sinergia resultante do uso dos eventos geneticamente melhorados e do avanço do conceito da nutrição responsável, dentre outros. O bem-sucedido modelo atual praticado foca no equilíbrio entre o cuidado com o meio ambiente, o bem-estar animal e a expressão máxima do desempenho zootécnico, graças à combinação precisa de cereais, oleaginosas e outros insumos e aditivos, capazes de oferecer um alimento com preço cada vez mais apropriado à capacidade de desembolso dos consumidores. Os custos proibitivos resultantes das hipotéticas restrições impostas e baseadas exclusivamente em suposições ou princípio da precaução, podem interromper iniciativas empreendedoras e punir severamente os consumidores, sobretudo os mais pobres, por causa dos custos adicionais para produção e incremento da agro inflação.”
Por causa do longo conteúdo resultante das discussões, optei por dividi-lo. A outra metade será publicada no artigo do mês de junho. Até lá!